"Rosas que tento colher
murcham logo em minha mão...
Os espinhos da vergôntea,
ah! esses não murcham não!
Cornélio Leal
Foto e poema
domingo, 9 de agosto de 2015
quarta-feira, 1 de julho de 2015
Poemas inéditos
SAUDADE
Rosas que tento colher
murcham logo em minha mão...
Os espinhos da vergôntea,
ah! esses não murcham não!
Cornélio Leal
sábado, 20 de junho de 2015
Cornélio Leal e o teatro
"Nas festas comemorativas da inauguração do Grupo Escolar Esmeraldino Bandeira, em 11 de junho de 1929, os seus alunos promoveram um festival em que levaram à cena as comédias "Escola à Antiga" e "Tudo dança..." Tomaram parte na primeira: Cornélio e Eunice Leal; Antônio e Edite Néri; Pedro Tavares, Zezé Rodrigues, Maria José Crespo, Elisa Bomfim e Elizabete Barros."
sexta-feira, 19 de junho de 2015
Era um cão pastor alemão de linhas tão bem definidas no processo de
apuração racial que parecia ter a fragilidade de uma estatueta artística ou de
um biscuit. E quando o seu
proprietário me informou de que era um desses espécimes em que, de gerações em
gerações, despertam os instintos adormecidos do lobo, mal pude acreditar.
-
Pois, como o senhor sabe, ou talvez não saiba, os cães dessa raça descendem
diretamente do lobo.
Eu
não sabia, pois nada entendo de cães, e a única impressão que me deixaram
breves encontros com o chamado “melhor amigo do homem”, representado que fosse
por um vira-latas de rua ou um basset
de jardim de casa rica, foi um vago temor de que me mordesse nos calcanhares.
-
Quando, por exemplo, ele se põe a uivar à lua, é de arrepiar – continuou o dono
do cão, com calafrios na voz.
E
quando ia matar a sede numa poça, não lambia a água, como é costume dos cães,
mas sorvia-a sem interrupção, até ficar saciado, como fazem os lobos e outros
animais selvagens.
- Ai
da pessoa que se puser ao alcance daquela fera! Salta logo para derrubar, e
antes que a vítima tenha tempo de defender-se, rasga-lhe a veia jugular.
Tais
coisas me disse do cão que passei a respeitar a casa a que ele montava guarda,
com aquela espécie de temor místico que no meu tempo de criança me causava a
gruta da história de trancoso em que um dragão adormecido guardava uma mágica
pedra preciosa. E o aviso que se lia numa placa afixada ao lado do portão de
entrada – CUIDADO COM O CÃO – valia por uma advertência de sinistra
significação a que em nenhum extremo eu desatenderia: tinha a mesma força
proibitiva de um desenho de caveira no deserto, assinalando um poço de água
envenenada.
-
Quando passarem aí pela calçada da casa vizinha, tenham cuidado, que o cachorro
pode estar solto – recomendava aos meus filhos à saída para a escola. Cuidado
para não passarem por perto da grade.
Apesar
da sensação incômoda que seria para mim, quando me punha no lugar do vizinho,
possuir uma fera em casa, não deixava de invejar-lhe o sossego que o terrível
animal lhe garantia, pois enquanto em minha casa não se podia esquecer o caixão
de lixo no quintal, à noite, porque mo roubavam, no quintal do vizinho galinhas
poedeiras e perus de engorda dormiam soltos, na mais absoluta segurança.
Via
de regra, o cão vivia preso por forte corrente de metal à porta do canil, mas à
noite, ou quando a família se ausentava, era posto em liberdade dentro dos
muros, com ordem expressa de não deixar nenhuma pessoa entrar, exceto, é claro,
os moradores da casa, a quem fazia festas com a cauda, como qualquer
cachorrinho de estimação, e a cujas vozes de comando se submetia com rastejante
subserviência.
- É
de admirar – dizia eu – que um cachorro dócil como esse no trato com as pessoas
de casa seja capaz de atirar-se contra um estranho...
- E
de derrubá-lo, e de rasgar-lhe a veia jugular – completava o dono do cão, com
uma espécie de prazer mórbido, pensava eu, em descrever a cena de crua
selvageria.
Essa
truculência de linguagem era tanto mais chocante quanto o homem era a pacatez
em pessoa. Na mansidão da voz, na tibieza do andar, na maneira pacífica como
pendurava nos ombros magros o paletó – qualquer coisa no modo como caíam as
mangas que dava a impressão de que o paletó estava suspenso de uma ombreira –
na santa passividade com que se deixava arengar pela mulher, revelava-se logo à
primeira vista o homem bom. A única nota dissonante era aquela mania de dizer
que o cão “derrubava e rasgava a veia jugular”.
- Seu
Constantino – perguntei-lhe uma vez – ele já chegou a fazer isso com alguém?
Guardou
silêncio por uns momentos – silêncio de graves consequências – suspirou de
alívio antecipado pelo mal conjurado, e disse:
- Um
pelo menos, se eu não tivesse chagado a tempo...
-
Está bem, seu Constantino, não precisa descrever o que ele teria feito. Só de
imaginar já sinto uma espécie de gastura.
O
horror à violência, seja premeditada, seja do acaso, como os desastres que
ocorrem todos os dias e a que todos estamos expostos, e que em mim e em minha mulher
se manifesta em forma de preocupação pelo que possa acontecer na rua aos nossos
filhos, tem sido o inimigo íntimo de nossa paz de espírito, e as horas
costumeiras que não trazem de volta à casa algum membro da família ausente se
enchem de interrogações e maus presságios. Cercamo-nos de todas as precauções
possíveis, e, na idade em que outras crianças, turbulentas e desacompanhadas,
tomam transportes coletivos para a cidade, as nossas não têm permissão de sair
sós ao jardim. Daí o nosso desagrado e o receio de ter por bem-vizinho um cão
que além de ser descendente direto de lobo, entendia de anatomia como um
cirurgião diabólico e mordia onde as defesas naturais do organismo tinham um
ponto reconhecidamente vulnerável.
- Isso
é um crime – comentava eu, às vezes, à baixa voz. – A polícia devia impedir que
um bicho desses fosse mantido tão perigosamente a dois passos de indefesas
criaturas humanas. Qualquer dia desse, um transeunte desavisado vai passando
por aí, ou entra, sem ver o letreiro, nessa maldita casa, e dá-se a desgraça.
Não sei onde estou que não publico uma denúncia nos jornais.
Era o
temor de desavença com a vizinhança, que me tem feito tolerar tudo sem
protesto, desde o berreiro de um rádio sintonizado a toda altura até a ameaça
suspensa sobre mim e os meus de sermos trucidados por um cão de maus bofes que
veio lá das selvas nórdicas com carta branca para matar.
Apesar
dos meus escrúpulos em transformar em caso pessoal com o vizinho a minha rixa
com o cão, minha mulher, que não tinha “papas na língua”, como ela própria
dizia, nem propósitos pacifistas, já andava estremecida com a mulher do
vizinho. Fora um incidente sem graves consequências, em que o cão estivera
envolvido.
- Sem
graves consequências, diz você. Então acha que vou deixar que todos riam de mim
por causa daquele maldito cão!
Chovera
e o leito da rua sem calçamento era um vasto lamaçal. Vinha ela muito
desembaraçada pela calçada, com as mãos cheias de embrulhos, quando o cão
investiu latindo dentro do pátio e tal susto lhe pregou que os embrulhos
saltaram em todas as direções, e ela própria foi cair, após uma série de
piruetas vãs, bem dentro do atoleiro.
- Dê
um fim a esse cachorro infeliz, senão eu o mato envenenado – disse, quando se
levantou, à mulher do vizinho, que assistia à cena envolvida numa camada de
gordura apática, e com olhos mansos de boi, que pareciam dizer: “Eu nada tenho
a ver com isso”.
De outra feita foi a boneca de minha
filha caçula, que foi parar, não sei como, nos dentes do cão...
E
amiudaram-se os desentendimentos, os olhares de declarada hostilidade, as
mútuas implicâncias, palavras ásperas trocadas por cima do muro, coubesse a culpa
ou não coubesse a culpa ao cão.
- Não
há outro jeito. Vou procurar uma casa seja lá onde diabo for, senão – disse de
mim para mim mesmo – quem acaba perdendo o juízo sou eu.
“Seu”
Constantino fora o único que não se deixara abalar. Continuava o mesmo tipo
encolhido e confinado, sem graça nem animação, de andar tímido e paletó
suspenso dos ombros magros como de um cabide. Cumprimentava-me ainda com a
mesma voz rasa de todo dia, onde não se entrevia a mais leve sombra de
constrangimento.
Isso
me desnorteava e provocava um conflito de sentimentos do qual saía com
redobrada raiva do cão.
E
veio o acontecimento culminante que me forçou a uma decisão desesperada e
trouxe um desfecho imprevisto ao caso, um desfecho com que eu absolutamente não
contava.
Era
domingo, depois do café, e eu acendera o cigarro e me dispunha a ler os
jornais, quando a empregada veio avisar-me, com olhos espantados e voz trêmula
de emoção, de que a minha filha de um ano e pouco de idade entrara no jardim da
casa vizinha e estava brincando com o cão. Lancei-me impetuosamente para fora e
agarrei o primeiro pedaço de pau que vi ao alcance da mão.
E
manobrando o pau como um possesso, corri a atacar o cão, que não desviava os
olhos da pequena, como se estivesse empenhado em decifrar um enigma
tantalizante. Na própria imobilidade do animal julguei perceber sinistros desígnios
– a ameaça de um ataque fulminante que só com o sacrifício da minha vida eu
conseguiria sobrestar. Arremessei-me heroicamente entre a minha filha e o cão,
e pus-me a desancá-lo sem dó nem piedade, rugindo e gritando como se, em vez de
um simples cão, estivesse enfrentando uma legião de demônios.
O
cachorro nada mais fazia senão ganir e rodopiar, lambendo as partes do corpo
doloridas e rastejando miseravelmente pelo chão.
- Seu
Botelho – ouvi a voz súplice de seu Constantino detrás de mim – por favor, não faça
isso, não mate o meu cachorro. Que mal lhe fez esse animal, homem de Deus, para
o senhor fazer uma coisa dessas com ele!
Confuso
e meio envergonhado, eu olhava o cachorro, humilde e rastejante aos meus pés.
- Mas
o senhor mesmo não me disse, seu Constantino, que esse cão era um perigo? Minha
filha aqui, arriscada a ser despedaçada por ele – o que o senhor queria que eu
fizesse?
O
homem coçou a cabeça encabulado e disse com o esforço de quem faz uma
confissão:
-
Esse cachorro nunca fez mal a uma formiga. É o animal mais inofensivo que já
vi.
Como
se a tensão nervosa dos últimos dias tivesse cedido de repente com a
surpreendente revelação, rebentei num frouxo de riso.
-
Ora, seu Constantino!
Seu
Constantino me olhava com aqueles olhos mansos e um ar desolado que ainda
tornava mais cômico o absurdo da situação.
Depois
que os ânimos serenaram e se trocaram desculpas e explicações, senti a mão
ossuda de seu Constantino no meu ombro.
- Não
precisa comentar com ninguém o que se passou... Com a fama que tem, esse
cachorro é muito respeitado. Não há malfeitor que se atreva a entrar na minha
casa.
- Até
eu, seu Constantino, pode crer, rendi meu preito à sua fama. O senhor não
queira saber o medo que tive desse cachorro!
Cornélio Leal
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